VIA ZERO HORA:
Regina Dalcastagnè fala sobre o perfil dos autores brasileiros
Entrevista: Regina Dalcastagnè
A pesquisa realizada por Regina Dalcastagnè mostra que o escritor brasileiro é homem, branco, com diploma superior e mora no Rio ou em São Paulo. Ainda que essa fosse uma hipótese, a professora da Universidade de Brasília argumenta que os resultados do estudo transformaram uma percepção em dado concreto.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista concedida por telefone.
Zero Hora - Mesmo que uma hipótese tenha se confirmado, alguns dados surpreenderam?
Regina Dalcastagnè - Achei excessivo o número de autores brancos, comparando com a realidade do país. Claro que sabemos que há uma dificuldade maior para pessoas não brancas participarem de qualquer campo de discurso. Mas foi um número que surpreendeu, mais no que diz respeito aos personagens, porque o número de personagens negros também é muito pequeno.
ZH - A senhora teve retorno do meio acadêmico e de escritores sobre a pesquisa?
Regina - A reação foi curiosa. De um modo geral, os escritores homens brancos se sentem ofendidos pela pesquisa, como se estivessem sendo acusados de alguma coisa, por mais que o texto diga o tempo inteiro que não estamos fazendo uma avaliação individual de cada escritor. É um mapeamento. Tanto é que existem vários escritores homens brancos fazendo uma obra um pouco mais crítica, abrangente, que incorpora outros personagens, mas são poucos dentro do conjunto. A pesquisa deixa entusiasmados escritores como mulheres e negros, que se sentem um pouco excluídos desse campo literário. No campo acadêmico, a repercussão depende da universidade onde você está, do grupo com o qual está falando. Há um pouco de reação contra estudar literatura e falar de números. É algo que incomoda um pouquinho algumas pessoas.
ZH - Incomoda por quê?
Regina - Quando faço uma pesquisa como essa, parto do pressuposto de que a literatura é uma forma de representação como o jornalismo, a telenovela, a publicidade. De algum modo, estou igualando-a a outras formas de representações sociais. Isso incomoda alguns estudiosos que querem ver a literatura à parte desse universo. Eu realmente acho que dá para juntar tudo.
ZH - Por que isso ocorre?
Regina - A meu ver, está vinculado, em primeiro lugar, a uma questão econômica. Os escritores homens brancos têm mais dinheiro e mais tempo para escrever. Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf defende que a primeira coisa que as mulheres precisam ter para escrever é um teto sobre a cabeça. Há uma dificuldade para se conseguir esse tempo, essa tranquilidade para sentar e escrever. Quando o homem trabalha o dia inteiro, ele chega em casa e vai jantar e escrever, enquanto a mulher vai ter que preparar a janta do marido, arrumar a mochila das crianças. É uma realidade que eu espero que mude. É uma questão de tempo e de economia.
ZH - A senhora comentou que a surpreendeu a proporção de 93,9% de autores brancos. Há explicação?
Regina - Volto à questão econômica. A literatura é uma das artes mais elitistas que existem, justamente porque, para escrever literatura, teoricamente, a primeira coisa que você tem que ter é domínio da escrita. E um domínio maior. Não é simplesmente saber ler e escrever o seu nome. Então, tem a ver com a educação, em primeiro lugar. A população negra brasileira está começando a entrar na universidade agora, é muito recente. Acho que ainda vai ter, futuramente, uma produção interessante (de literatura). É uma população que tem dificuldade de se educar formalmente, que trabalha demais. Como você vai conseguir produzir dentro dessas circunstâncias? Fica mais difícil.
ZH - Uma ressalva que poderia ser feita é que a pesquisa não considera romances publicados por editoras menores.
Regina - Os números seriam muito próximos. As pessoas se sentem incomodadas, como se eu estivesse desvalorizando as editoras pequenas. Não há nenhuma valoração, até porque lemos livros horríveis publicados por grandes editoras (risos). Não queremos dizer que não há excelentes escritores publicando por pequenas editoras. Essa pesquisa é numérica. O que estamos dizendo é que, quando um livro é publicado por uma grande editora, é considerado literatura. A grande editora acaba dando um carimbo. Fora isso, a grande editora chega a todas as livrarias do país, tem mais acesso à imprensa, consegue traduções para o Exterior. Estamos discutindo o campo literário. Quem publica por grandes editoras é considerado, de fato, um escritor. Como tem uma divulgação maior, o escritor tem como influenciar outros produtores.
ZH - De modo geral, os personagens refletem o perfil dos escritores. A literatura brasileira contemporânea é autorreferente ou isso é assim há mais tempo?
Regina - Deve ter sido sempre assim. Na verdade, fica mais fácil para os autores falarem do mundo que conhecem. Há a ideia de que não precisa ser mulher para escrever sobre uma mulher. Mas o que a pesquisa mostra é que precisa, sim. Se não, algumas experiências desaparecem do texto. Não acho que os homens tenham que escrever mais sobre mulheres ou que as mulheres tenham que escrever mesmo sobre mulheres. É necessária uma variedade maior de experiências entre os autores. Acredito que isso vai se refletir também na literatura. A literatura brasileira ganharia em variedade e heterogeneidade se os autores fossem mais heterogêneos também.
ZH - Qual é a solução para haver mais heterogeneidade na literatura brasileira?
Regina - Precisamos de mais educação, essa é a primeira questão. Não só para formar escritores, mas para formar leitores interessados nos assuntos. Se aumentar o público leitor negro, talvez as editoras se sintam impulsionadas a buscar uma literatura que vai interessar a esse público. Tampouco acuso as editoras. É uma questão mais ampla. Será que o leitor de classe média, branco, está interessado nessas experiências diferentes, nessa vivência do cobrador de ônibus, da manicure? Ou será que ele está interessado nos bandidos exóticos, nesse movimento mais extraordinário da miséria? O problema é complexo, e a solução não tem um caminho só. Tem a ver com mais educação, tem a ver com abrir, nas universidades, os olhos para outras produções que não sejam apenas as dos brancos. É preciso que os pesquisadores ensinem outro tipo de produção, que a mídia apresente também um espaço para isso.
A pesquisa realizada por Regina Dalcastagnè mostra que o escritor brasileiro é homem, branco, com diploma superior e mora no Rio ou em São Paulo. Ainda que essa fosse uma hipótese, a professora da Universidade de Brasília argumenta que os resultados do estudo transformaram uma percepção em dado concreto.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista concedida por telefone.
Zero Hora - Mesmo que uma hipótese tenha se confirmado, alguns dados surpreenderam?
Regina Dalcastagnè - Achei excessivo o número de autores brancos, comparando com a realidade do país. Claro que sabemos que há uma dificuldade maior para pessoas não brancas participarem de qualquer campo de discurso. Mas foi um número que surpreendeu, mais no que diz respeito aos personagens, porque o número de personagens negros também é muito pequeno.
ZH - A senhora teve retorno do meio acadêmico e de escritores sobre a pesquisa?
Regina - A reação foi curiosa. De um modo geral, os escritores homens brancos se sentem ofendidos pela pesquisa, como se estivessem sendo acusados de alguma coisa, por mais que o texto diga o tempo inteiro que não estamos fazendo uma avaliação individual de cada escritor. É um mapeamento. Tanto é que existem vários escritores homens brancos fazendo uma obra um pouco mais crítica, abrangente, que incorpora outros personagens, mas são poucos dentro do conjunto. A pesquisa deixa entusiasmados escritores como mulheres e negros, que se sentem um pouco excluídos desse campo literário. No campo acadêmico, a repercussão depende da universidade onde você está, do grupo com o qual está falando. Há um pouco de reação contra estudar literatura e falar de números. É algo que incomoda um pouquinho algumas pessoas.
ZH - Incomoda por quê?
Regina - Quando faço uma pesquisa como essa, parto do pressuposto de que a literatura é uma forma de representação como o jornalismo, a telenovela, a publicidade. De algum modo, estou igualando-a a outras formas de representações sociais. Isso incomoda alguns estudiosos que querem ver a literatura à parte desse universo. Eu realmente acho que dá para juntar tudo.
ZH - Por que isso ocorre?
Regina - A meu ver, está vinculado, em primeiro lugar, a uma questão econômica. Os escritores homens brancos têm mais dinheiro e mais tempo para escrever. Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf defende que a primeira coisa que as mulheres precisam ter para escrever é um teto sobre a cabeça. Há uma dificuldade para se conseguir esse tempo, essa tranquilidade para sentar e escrever. Quando o homem trabalha o dia inteiro, ele chega em casa e vai jantar e escrever, enquanto a mulher vai ter que preparar a janta do marido, arrumar a mochila das crianças. É uma realidade que eu espero que mude. É uma questão de tempo e de economia.
ZH - A senhora comentou que a surpreendeu a proporção de 93,9% de autores brancos. Há explicação?
Regina - Volto à questão econômica. A literatura é uma das artes mais elitistas que existem, justamente porque, para escrever literatura, teoricamente, a primeira coisa que você tem que ter é domínio da escrita. E um domínio maior. Não é simplesmente saber ler e escrever o seu nome. Então, tem a ver com a educação, em primeiro lugar. A população negra brasileira está começando a entrar na universidade agora, é muito recente. Acho que ainda vai ter, futuramente, uma produção interessante (de literatura). É uma população que tem dificuldade de se educar formalmente, que trabalha demais. Como você vai conseguir produzir dentro dessas circunstâncias? Fica mais difícil.
ZH - Uma ressalva que poderia ser feita é que a pesquisa não considera romances publicados por editoras menores.
Regina - Os números seriam muito próximos. As pessoas se sentem incomodadas, como se eu estivesse desvalorizando as editoras pequenas. Não há nenhuma valoração, até porque lemos livros horríveis publicados por grandes editoras (risos). Não queremos dizer que não há excelentes escritores publicando por pequenas editoras. Essa pesquisa é numérica. O que estamos dizendo é que, quando um livro é publicado por uma grande editora, é considerado literatura. A grande editora acaba dando um carimbo. Fora isso, a grande editora chega a todas as livrarias do país, tem mais acesso à imprensa, consegue traduções para o Exterior. Estamos discutindo o campo literário. Quem publica por grandes editoras é considerado, de fato, um escritor. Como tem uma divulgação maior, o escritor tem como influenciar outros produtores.
ZH - De modo geral, os personagens refletem o perfil dos escritores. A literatura brasileira contemporânea é autorreferente ou isso é assim há mais tempo?
Regina - Deve ter sido sempre assim. Na verdade, fica mais fácil para os autores falarem do mundo que conhecem. Há a ideia de que não precisa ser mulher para escrever sobre uma mulher. Mas o que a pesquisa mostra é que precisa, sim. Se não, algumas experiências desaparecem do texto. Não acho que os homens tenham que escrever mais sobre mulheres ou que as mulheres tenham que escrever mesmo sobre mulheres. É necessária uma variedade maior de experiências entre os autores. Acredito que isso vai se refletir também na literatura. A literatura brasileira ganharia em variedade e heterogeneidade se os autores fossem mais heterogêneos também.
ZH - Qual é a solução para haver mais heterogeneidade na literatura brasileira?
Regina - Precisamos de mais educação, essa é a primeira questão. Não só para formar escritores, mas para formar leitores interessados nos assuntos. Se aumentar o público leitor negro, talvez as editoras se sintam impulsionadas a buscar uma literatura que vai interessar a esse público. Tampouco acuso as editoras. É uma questão mais ampla. Será que o leitor de classe média, branco, está interessado nessas experiências diferentes, nessa vivência do cobrador de ônibus, da manicure? Ou será que ele está interessado nos bandidos exóticos, nesse movimento mais extraordinário da miséria? O problema é complexo, e a solução não tem um caminho só. Tem a ver com mais educação, tem a ver com abrir, nas universidades, os olhos para outras produções que não sejam apenas as dos brancos. É preciso que os pesquisadores ensinem outro tipo de produção, que a mídia apresente também um espaço para isso.
ZERO HORA