José Francisco Botelho | Foto: Arquivo do autor. |
A CLL continua com a sessão de entrevistas,
dessa vez com os finalistas da categoria Conto. Quem conversou com a gente foi o
escritor José Francisco Botelho, autor do livro A Árvore que falava
Aramaico (Editora Asterisco, 2011), finalista na categoria. Confere aí nossa
conversa com ele.
CLL - Tu acha que os leitores e editoras veem o conto como um gênero subestimado?
José F. Botelho - Acredito que o conto seja
subestimado de duas maneiras. A primeira delas é a seguinte: ele muitas vezes
não é encarado como um veículo de prazer para o leitor, mas como um gênero
voltado especialmente aos críticos, aos teóricos, às academias. Ou seja, de
maneira curiosa, o conto acaba sendo subestimado exatamente por ter sido posto
em uma espécie de pedestal – caso paradoxal em que um gênero sofre – e sofre
muito! – por um tipo de prestígio que é excessivo e algo desencorajador. Em
segundo lugar, o conto muitas vezes não é visto como um espaço de criação de
universos imaginários. Joga-se ao conto a reputação de um árida arena para jogos
estilísticos. Sua brevidade é confundida com rarefação, e esquecemos que o conto
nasceu precisamente como portador de uma gradação máxima de intensidade
imaginativa (estou pensando em Poe, em Guy de Maupassant, etc). Ou seja, o conto
muitas vezes não é visto como um veículo para a imersão do leitor. Bem, essas
duas modalidades de desprezo que o conto sofre estão – naturalmente –
relacionadas.
De minha parte, acho necessário primeiramente
tirar o conto dessa estufa onde ele, em vez de florescer, fenece; trazê-lo para
junto do leitor e lhe oferecer, antes de qualquer outra coisa, uma história bem
contada dentro de um universo ficcional envolvente e interessante. É o que tento
fazer, não sei se com sucesso, mas certamente tento. Felizmente, temos e sempre
tivemos ótimos contistas – estou falando especificamente da cena no RS, pois é a
que conheço melhor. O gaúcho tem uma tradição longa no conto, e essa tradição
refina-se constantemente; ou seja, o pessoal escreve realmente muito bem, e a
todo momento descubro um novo contista conterrâneo que me surpreende e encanta.
A mudança essencial deve ser na forma como o conto é encarado e lido: ele deve
voltar à cabeceira das pessoas, deve ser lido com menos veneração e com mais
gosto.
CLL- Tu vê a internet como um bom meio para divulgar o escritor, ou o livro ainda é o melhor canal? Qual é a importância da publicação?
J.F.B - O livro ainda é – eu acredito – a
melhor, maior e mais revolucionária invenção da humanidade; mas não creio que
seja necessário aceitar uma oposição entre o livro e as novas tecnologias. Pelo
contrário, minha experiência é de que a internet muitas vezes abre caminhos para
(e em direção ao) livro. Veja bem: as páginas e sites sobre literatura são
criados geralmente por pessoas absolutamente fascinadas pelo livro, bibliófilos
tão convictos, leitores tão intensos, que precisam de ainda mais uma vazão para
seus interesses e paixões literárias. Então, se depender desse pessoal, o livro
não vai acabar é nunca. Ademais, a internet é um excelente veículo não apenas
para divulgar o próprio trabalho, mas também para conhecer trabalhos alheios
que, de outra forma, talvez nunca chegassem até teus olhos. Sites como o
Mallarmargens, que é sediado em Passo Fundo e conta com colaborações de todo o
país e de fora dele, são uma colaboração à cultura, tão importante quanto um
livro de ensaios ou uma coletânea de autores. Posso dizer que conheci alguns dos
meus poetas atuais favoritos por meio dessa ferramenta. Ademais, existem
excelentes críticos cujo principal veículo é a internet, como o Gustavo Melo
Czekster. Acho que talvez, em alguns casos, se configure uma situação em que a
pessoa publica primeiro pela internet, atinge um certo público leitor, e depois
publica seu livro, digamos, fisicamente. Veremos. De qualquer forma, a
publicação, obviamente, é importantíssima, mas não deve virar um fetiche.
Não acho que devamos escrever exclusivamente com vistas a publicar. Tenho em meu escritório – e em minha garagem! – uma infinidade de cadernos de todos os tamanhos, com coisas que escrevi ao longo de muitos anos e que não sei se algum dia vou publicar. A literatura deve ser algo íntimo, antes que qualquer outra coisa. É algo que fazemos para saber que estamos no mundo, para dar consistência ao universo, para existir de forma mais nítida e intensa. Se não escrevo, viro um borrão humano. Escrevendo, estou de novo em foco, volto ao convício dos eleitos, ainda que o que eu escrevo continue na gaveta, ignorado. Escrever é essencial. A publicação é uma consequência.
Não acho que devamos escrever exclusivamente com vistas a publicar. Tenho em meu escritório – e em minha garagem! – uma infinidade de cadernos de todos os tamanhos, com coisas que escrevi ao longo de muitos anos e que não sei se algum dia vou publicar. A literatura deve ser algo íntimo, antes que qualquer outra coisa. É algo que fazemos para saber que estamos no mundo, para dar consistência ao universo, para existir de forma mais nítida e intensa. Se não escrevo, viro um borrão humano. Escrevendo, estou de novo em foco, volto ao convício dos eleitos, ainda que o que eu escrevo continue na gaveta, ignorado. Escrever é essencial. A publicação é uma consequência.
CLL - Quais os escritores que mais te
influenciaram (ontem e hoje), e quais os bons contistas que tu aponta hoje no
Brasil?
J.F.B - No que diz respeito à relação entre linguagem e relato – a linguagem enriquecendo o relato, sem sufocá-lo – tento sempre chegar aos pés de Eça de Queirós e Joseph Conrad. Em Vladimir Nabokov me atraiu sempre aquele quase exagero, a intensidade da palavra chegando ao limite do aceitável, sem desabar – e atingindo, por isso mesmo, uma exatidão quase obscena. Os argumentos criados por Kafka e Italo Calvino sempre me assombraram. Shakespeare é um amigo de todas as horas: basta abrir suas Obras Completas em qualquer página e pronto, o mundo volta a fazer sentido, até mesmo o horror e o sofrimento do mundo. Tenho a vaga ousadia de me filiar à tradição da literatura fantástica, de Jacques Cazotte, de Chamisso, de Poe, de Guy de Maupassant, de Hoffmann e Lovecraft. Me agradam autores obscuros, desconhecidos, os jamais devidamente apreciados. Encontro inspirações das mais férteis em gêneros desprezados pela crítica, como o horror, a fantasia, a ficção científica e todo o campo da literatura especulativa. Ray Bradbury, Theodore Sturgeon e Ursula Le Guin estão entre os autores que (bem ou mal) me levaram a escrever meus próprios textos. Leio despudoradamente tudo o que em inglês se chama de crime literature, e venho dizendo há algum tempo que James Ellroy é um dos maiores escritores vivos em língua inglesa. Aprendi com o Ellroy uma espécie de alegria trágico-sombria, um júbilo noir na imperfeição das coisas. À parte tudo isso, Homero ainda é o maior autor de todos, para sempre.
Também cobiço aquela alta poesia das milongas platinas, dos pajadores fronteiriços. Uma grande influência, por sinal, foi um homem que conheci anos atrás, quando eu era criança, e que nunca escreveu um livro. Era um homem muito pobre, da zona rural, que jamais frequentara a escola. Eu o conheci nos ermos entre Bagé e Caçapava do Sul. Ele amava a palavra, embora não tivesse dinheiro para comprar livros; compunha e recitava poemas orais no metro da "décima espinela", contando o número de sílabas e versos na ponta dos dedos, enquanto fumava um cigarro de palha. Anos depois, eu o reencontrei: miserável, trabalhava de porteiro em algum lugar da cidade. Aprendi com aquele cara que a literatura é um negócio íntimo, que exige uma lealdade de asceta, sem o desejo de outra recompensa além do prazer estético, do enlevamento e do significado que dá à vida – como a paixão erótica. Pois até um verso que se perderá nos ermos, insular e ignorado, pode merecer entrar na memória universal.
Quanto aos autores atuais, como eu disse, felizmente temos tantos bons escritores que é difícil enumerá-los. Sergio Faraco é um dos meus contistas favoritos na literatura universal; ouvi dizer que parou de escrever e espero que não seja verdade. Aldyr Garcia Schlee, que vive em Pelotas ou Capão do Leão, não sei bem, é outro cara que nos engrandece. Não só na narrativa curta, mas também no romance: Don Frutos é uma coisa extraordinária, que merece ser lida e relida. Aliás, o interior do Rio Grande do Sul – posso falar mais propriamente da Campanha, onde nasci e vivo – é uma região altamente literária, cheia de bons escritores que merecem ser mais divulgados na capital. Em Bagé temos, no mínimo, um gênio poético chamado Eron Vaz Mattos. De uns cinco anos para cá, temos uma verdadeira maré de excelência em autores jovens ou recém publicados; Porto Alegre, em particular, está fervilhando de contistas incríveis. Eu falaria daqueles cujos livros comecei a ler recentemente – Flávio Torres, Daniela Langer, Gustavo Melo Czekster. De volta à narrativa longa, o Rafael Bán Jacobsen é um cara que sempre me surpreende. Toda essa gente forma um baita caldo cultural, e me dão alegria de estar vivo hoje, aqui, escrevendo.
CLL - Qual a importância do Prêmio Açorianos pra ti e como tu acredita que ele repercute dentro da classe artística da região?
J.F.B - No que diz respeito à relação entre linguagem e relato – a linguagem enriquecendo o relato, sem sufocá-lo – tento sempre chegar aos pés de Eça de Queirós e Joseph Conrad. Em Vladimir Nabokov me atraiu sempre aquele quase exagero, a intensidade da palavra chegando ao limite do aceitável, sem desabar – e atingindo, por isso mesmo, uma exatidão quase obscena. Os argumentos criados por Kafka e Italo Calvino sempre me assombraram. Shakespeare é um amigo de todas as horas: basta abrir suas Obras Completas em qualquer página e pronto, o mundo volta a fazer sentido, até mesmo o horror e o sofrimento do mundo. Tenho a vaga ousadia de me filiar à tradição da literatura fantástica, de Jacques Cazotte, de Chamisso, de Poe, de Guy de Maupassant, de Hoffmann e Lovecraft. Me agradam autores obscuros, desconhecidos, os jamais devidamente apreciados. Encontro inspirações das mais férteis em gêneros desprezados pela crítica, como o horror, a fantasia, a ficção científica e todo o campo da literatura especulativa. Ray Bradbury, Theodore Sturgeon e Ursula Le Guin estão entre os autores que (bem ou mal) me levaram a escrever meus próprios textos. Leio despudoradamente tudo o que em inglês se chama de crime literature, e venho dizendo há algum tempo que James Ellroy é um dos maiores escritores vivos em língua inglesa. Aprendi com o Ellroy uma espécie de alegria trágico-sombria, um júbilo noir na imperfeição das coisas. À parte tudo isso, Homero ainda é o maior autor de todos, para sempre.
Também cobiço aquela alta poesia das milongas platinas, dos pajadores fronteiriços. Uma grande influência, por sinal, foi um homem que conheci anos atrás, quando eu era criança, e que nunca escreveu um livro. Era um homem muito pobre, da zona rural, que jamais frequentara a escola. Eu o conheci nos ermos entre Bagé e Caçapava do Sul. Ele amava a palavra, embora não tivesse dinheiro para comprar livros; compunha e recitava poemas orais no metro da "décima espinela", contando o número de sílabas e versos na ponta dos dedos, enquanto fumava um cigarro de palha. Anos depois, eu o reencontrei: miserável, trabalhava de porteiro em algum lugar da cidade. Aprendi com aquele cara que a literatura é um negócio íntimo, que exige uma lealdade de asceta, sem o desejo de outra recompensa além do prazer estético, do enlevamento e do significado que dá à vida – como a paixão erótica. Pois até um verso que se perderá nos ermos, insular e ignorado, pode merecer entrar na memória universal.
Quanto aos autores atuais, como eu disse, felizmente temos tantos bons escritores que é difícil enumerá-los. Sergio Faraco é um dos meus contistas favoritos na literatura universal; ouvi dizer que parou de escrever e espero que não seja verdade. Aldyr Garcia Schlee, que vive em Pelotas ou Capão do Leão, não sei bem, é outro cara que nos engrandece. Não só na narrativa curta, mas também no romance: Don Frutos é uma coisa extraordinária, que merece ser lida e relida. Aliás, o interior do Rio Grande do Sul – posso falar mais propriamente da Campanha, onde nasci e vivo – é uma região altamente literária, cheia de bons escritores que merecem ser mais divulgados na capital. Em Bagé temos, no mínimo, um gênio poético chamado Eron Vaz Mattos. De uns cinco anos para cá, temos uma verdadeira maré de excelência em autores jovens ou recém publicados; Porto Alegre, em particular, está fervilhando de contistas incríveis. Eu falaria daqueles cujos livros comecei a ler recentemente – Flávio Torres, Daniela Langer, Gustavo Melo Czekster. De volta à narrativa longa, o Rafael Bán Jacobsen é um cara que sempre me surpreende. Toda essa gente forma um baita caldo cultural, e me dão alegria de estar vivo hoje, aqui, escrevendo.
CLL - Qual a importância do Prêmio Açorianos pra ti e como tu acredita que ele repercute dentro da classe artística da região?
J.F.B - O Açorianos é o nosso prêmio, no sentido de que já está entranhado em nossa cultura e em nosso imaginário. Até o nome – Açorianos – tem esses ares de algo imensamente nosso. Aliás, uma nota à parte: sempre achei delicioso o nome do prêmio estar no plural. É algo raro, não? Pense em outros prêmios: Jabuti, Kikito, Oscar, César, Pulitzer... Todos no singular. O Açorianos, pelo contrário, é muitos em um; já tem um povo inteiro só no nome e está no plano de nossa cultura como aquelas casas portuguesas antigas que dão sentido a uma rua. É um deleite ter sido indicado, especialmente na ótima companhia do Altair Martins e do Olavo Amaral. Lembro de ter encontrado o Altair quando eu fazia mestrado em letras, entre 2007 e 2009, eu acho. Ele estava escrevendo Enquanto água, eu estava escrevendo A árvore que falava aramaico. Nunca imaginei que nos reencontraríamos no Açorianos. Já o livro do Olavo eu conheci graças à indicação – o que por si só já tem o valor de um prêmio.