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3 de janeiro de 2012

Entrevista: Gunter Axt


Nascido na capital gaúcha, o historiador Gunter Axt ajuda, com suas publicações, a registrar e estudar a identidade cultural do brasileiro. No ano que passou, o autor empenhou-se na produção de quatro livros, dos quais três tratavam sobre o Rio Grande do Sul, sendo que dois deles possuíam como foco central a cidade de Porto Alegre.

Devido à contínua atuação de Axt na retratação do porto-alegrense e gaúcho, conversamos por e-mail com o autor sobre a função do historiador, os campos da Literatura e da História e suas produções culturais em 2011.

CLL - Em que medida o trabalho do historiador, na exposição da construção da identidade cultural de um povo, exerce efeito na sociedade retratada?

Cada época, cada sociedade, compreende ao seu modo a função do historiador. Na antiguidade Greco-romana, a sua centralidade cultural era notória. Heródoto, Tucídites e Homero ao contarem histórias, falavam das tradições, reproduziam valores da comunhão social, faziam literatura e poesia e se remetiam ainda ao universo do sagrado. No século XIX, o ofício do historiador esteve umbilicalmente ligado à construção e consolidação dos estados nacionais. No Brasil, por exemplo, a fundação do Instituto Histórico e Geográfico relaciona-se com o processo de independência de Portugal e o trabalho de Adolpho de Varnhagen, nosso primeiro grande historiador, ao fazer o elogio da colonização portuguesa e da sociedade patriarcal, sustenta a viabilidade de um Brasil autônomo, desde que sob o tirocínio da monarquia. O filósofo italiano Benedetto Crocce, por sua vez, prestigiou de tal modo o ofício do historiador que atribuiu à disciplina da história o lócus privilegiado para a produção de sentidos nas Humanidades, espaço até então ocupado pela Filosofia. Isto porque, para ele, a boa história seria aquela que inquire o passado a partir de impasses dispostos no presente, procurando forjar-lhes explicações. Nesse sentido, a história dinâmica e criativa nada teria a ver com uma filológica coleção de datas, fatos e documentos, nem tampouco com o elogio poético ou laudatório de uma biografia ou de uma nação, mas sua função repousaria na construção de nexos explicativos para as pessoas. Eis aí um ponto de convergência entre a história ciência e a história aplicada, isto é, aquela de matiz mais acadêmico e a que dialoga com um público amplo. E, de fato, sinto que vem crescendo a demanda da sociedade pela oferta de nexos e sentidos entre um presente excessivamente acelerado e fragmentado e o passado. Há uns 20 anos atrás, olhávamos para os franceses com admiração quando percebíamos que na França livros de história podiam ser Best-sellers. Esta já é uma realidade no Brasil. Hoje, são os intelectuais franceses que olham com admiração para o Brasil, atentos à efervescência do nosso mercado editorial, à excelência das revistas de divulgação de cultura e ao gigantismo dos nossos congressos de historiadores. A opinião dos historiadores é cada vez mais requisitada. Ainda há um longo e árduo caminho a ser percorrido para a valorização do ofício do historiador no Brasil, mas, penso, já se avançou bastante.
CLL - Participaste do livro "Identidade: Porto Alegre - Brasil", dos fotógrafos Leonid Streliaev, Liane Neves e Adriana Franciosi. Neste documento, como lidaste com a tarefa de encapsular em textos pequenos o espírito e história da capital gaúcha?

Foi um desafio considerável. Meu convívio com jornalistas foi fundamental para incorporar à minha escrita o esforço de síntese e a economia de palavras. Além disso, apreendi da vivência com as pautas jornalísticas, tanto na mídia impressa quanto na televisiva, ou no rádio, que é preciso adaptar-se a mensagem que se deseja transmitir ao espaço efetivamente disponível. É claro que muitas vezes podemos perder conteúdo ao resumir matérias. Por outro lado, pode-se ganhar em ênfase, pois menos também pode ser mais. No caso em tela, procurei pensar nos conceitos que pareciam definir a cidade de Porto Alegre. Cada conceito ganhou um texto de um ou dois parágrafos. Estes textos foram muito mais afetivos, imagéticos e literários do que ferramentas de sustentação acadêmica. Mas, afinal, esta era a proposta do livro: de forma imagética e sintética transmitir uma percepção pungente da cidade de Porto Alegre para as pessoas. Trabalhar com três fotógrafos renomados e competentes foi um grande estímulo.

CLL - No livro "Histórias de Porto Alegre: Redenção", compartilhas a autoria com Moacyr Scliar, que deixou saudades para os porto-alegrenses. Como foi construir um produto literário contando com os textos do renomado escritor gaúcho? Existe limite entre o trabalho do historiador e do escritor, ou a história também pode ser considerada literatura?

O Scliar era uma pessoa de convívio agradável, uma alma muito generosa. Estava sempre disposto a colaborar com a literatura, com os jovens escritores, com a cultura da cidade. Foi um modelo de intelectual para todos nós. Compartilhar com o Moacyr a autoria de um livro sobre Porto Alegre foi uma honra e conviver com ele nesse processo uma glória. Nossa dinâmica de trabalho foi simples: combinamos que eu me debruçaria mais sobre os aspectos propriamente históricos do parque e ele se proporia a uma abordagem mais impressionista e afetiva.

Sim, eu acho que a história é uma classe de narrativa e uma forma de literatura. Dependendo de como escrevemos, matizamos uma ou outra mensagem, afunilamos ou ampliamos o espectro dos nossos leitores. Historiadoras como Bárbara Tuchman e Camille Paglia sempre foram, destarte, uma fonte de inspiração. Ambas possuem argumentos cientificamente bem calçados, que vazam com rigor e sedução literários.
CLL - Tens especialização em diversos campos dentro do estudo da História: Econômica, Direito e Poder Judiciário, Militar e Cultural. Com essa bagagem de conhecimentos e a agenda de palestras, lançamentos, produção de textos para diversas publicações, como conciliar o foco de cada tema à proposta do dia?

Num certo sentido, a História é uma disciplina ingrata. Quanto mais estudamos e pesquisamos, menos sabemos, pois ela abarca, pela sua própria natureza, tudo o que figura no domínio do humano e da cultura. Todo escritor vive uma tensão inerente, entre a necessária introspecção para a escrita e, por outro lado, a extroversão, quando se divulga seu trabalho e se colhe matéria social para sua escrita. Além dessa tensão estruturante, o historiador ainda vive outra, qual seja, a que confronta o impulso no sentido da erudição e o influxo em direção à especialização. Um bom trabalho científico precisa ser especializado, precisa discutir as fontes ao nível dos pequenos detalhes. Mas o trabalho de qualidade não se faz também sem boa dose de erudição, pois é dali que se tira a percepção do contexto e é o contexto que nos permite avaliar a especificidade da matéria com a qual trabalhamos. Eu sempre percebi a História Cultural como uma fronteira sofisticada e complexa da nossa disciplina. Mas entendia que, para chegar lá, era preciso passar pela História Econômica e Política primeiro, pois parecia fazer pouco sentido discorrer sobre as tramas da cultura sem compreender razoavelmente o contexto das relações de trabalho e de poder. O interesse pela História Militar, no meu caso, foi um desdobramento do olhar sobre o político. E a especialização em História do Direito e da Justiça, em minha vida, foi em grande medida uma decorrência do meu trabalho com os projetos de memória institucional, do trabalho com a história aplicada, com a gestão cultural com foco no patrimônio histórico.

O mais difícil, creio, quando se lida com temas tão diversos é voltar a um assunto tratado em um artigo ou em um livro um, dois, dez anos antes. Às vezes, as pessoas me convidam para palestras e eu tenho de estudar os meus próprios livros para poder proferi-las, pois o tema não está mais fresco na memória. E, quando se está enfronhado em outro assunto, retornar a algo já tratado não é fácil, demandando considerável esforço de concentração e tempo.