Às vezes tenho a impressão que essa questão de incentivos fiscais é um
avantesma que paira sobre a política cultural. Desde a criação da chamada Lei
Rouanet (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), já houve várias tentativas de
modifica-la. Todas gerando enormes polêmicas e dando em nada.
É sempre bom lembrar que essa lei, negociada pelo então Secretário Nacional de Cultura no governo Collor, embaixador Sérgio Paulo Rouanet, deve-se à enorme habilidade que ele teve para minimizar os estragos feitos no início daquele governo, quando o tal do caçador de marajás revogou a Lei Sarney de incentivo à cultura, que havia sido implementada na gestão de Celso Furtado no ministério. Collor e sua fúria pseudo moralista alegava que a legislação era foco de corrupção. Mas, ao que consta, o ministro collorido Ipojuca Pontes não conseguiu demonstrar nenhum caso e ficou marcado tão somente pelo total desmonte dos órgãos de política cultural existentes. O Embaixador Rouanet, então conseguiu construir uma nova lei de incentivos fiscais.
Os problemas da lei são conhecidos: é burocrática, apela sempre para a hiper-regulamentação justificada pelo combate à corrupção. E, principalmente, por deixar nas mãos dos departamentos de marketing das grandes empresas as decisões sobre o apoio aos projetos.
Juca Ferreira tentou modifica-la, e o projeto está devidamente congelado nas catacumbas da Casa Civil. No final do governo Lula, o então ministro saiu pela tangente e apresentou o projeto do Vale Cultura, finalmente aprovado e recém regulamentado por Decreto (8.083, de 26/08/2013). Por essa legislação abre-se a possibilidade de trabalhadores de empresas “optantes” do Programa e que ganhem até cinco salários mínimos receberem o vale, no valor de R$ 50,00, para gastar em produtos culturais. As empresas que estão no regime do lucro real se beneficiarão de descontos no IRPJ, até 1% do valor desse imposto.
Dois detalhes cruciais: a empresa precisa optar (ou seja, não há nenhuma obrigatoriedade disso), e só se beneficia do incentivo fiscal as que estiverem no lucro real.
Evidentemente existem milhões de trabalhadores empregados pelas grandes empresas e pelo sistema financeiro, que poderão eventualmente ser beneficiados pelo Vale Cultura. Isso é muito bom.
Mas esses trabalhadores fazem parte do segmento mais bem remunerado, com melhores garantias de trabalho e benefícios sociais. Tudo bem que tenham isso e acesso ao Vale Cultura. Mas uma coisa é ganhar até cinco salários mínimos e trabalhar na Petrobrás, outra é ganhar até cinco salários mínimos e trabalhar no Armazém do Silva no interior de Pernambuco.
As pequenas e médias empresas, as empresas que estão no regime do Simples, só se beneficiariam se os patrões resolvessem ser benevolentes e lhes dessem Vale Cultura. Como sabemos que benevolência e boa vontade não fazem parte do espírito do capitalismo, esses trabalhadores ficam fora disso. E boa parcela deles vive em cidades com pouquíssimos equipamentos culturais, aí incluídos cinemas e livrarias.
De qualquer maneira, o Vale Cultura deverá injetar recursos bem significativos nos segmentos da indústria cultural.
Mas, qual a parte que caberá ao segmento do livro nesse bolo?
Espero sinceramente estar equivocado, mas tenho a impressão de que livrarias e editoras não estão preparados para enfrentar a concorrência dos outros segmentos na disputa por esses recursos.
Na Convenção da ANL, que aconteceu no Rio pouco antes da Bienal, representantes do grupo Ticket estiveram por lá oferecendo “condições especiais” de adesão das livrarias ao sistema, tentando arrebanhar o máximo das empresas que venham aceitar o Vale Cultura. Iniciativa interessante, que já deve ser seguida por outras operadoras.
Mas, será que a expectativa de faturar de trinta a cinquenta por cento desses recursos é razoável?
Observando anos de inércia de livreiros e editores, desconfio que o segmento que vai aproveitar melhor o Vale Cultura será o do porta-a-porta, livros de coleções. É um segmento que enfrentou dificuldades terríveis no período inflacionário, mas que se reestruturou e está ativíssimo, crescendo a cada ano de modo consistente.
Os vendedores de coleções vão atrás dos clientes. E quando entram em uma refinaria, uma usina ou grande instalação industrial, seja através dos sindicatos, associações de trabalhadores ou com licença dos departamentos de recursos humanos, aproveitam ao máximo as possibilidades que se apresentam.
E o Vale Cultura é uma grande oportunidade precisamente para essas situações. Trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos, com sede de educação e informação para si e para seus filhos, e que moram em cidades onde cinema e teatro são opções difíceis de lazer, são um alvo fantástico para quem se dispuser a ir atrás do segmento.
Quem ficar sentado esperando que essas pessoas apareçam nas livrarias vai ficar chupando o dedo. Mesmo com cartaz na porta dizendo que aceita o Vale Cultura.
O aporte de recursos proporcionado pelo Vale Cultura pode repetir as mesmas distorções da legislação mais abrangente de incentivos fiscais: os pequenos (pequenas empresas e seus empregados) completamente alijados disso. Vamos esperar que a experiência de sua aplicação motive o Ministério da Cultura a brigar com a Fazenda e o Planejamento pela extensão dos benefícios para as empresas do lucro presumido ou do Simples, onde estão os trabalhadores mais carentes de tudo. Inclusive de cultura.
*Publicado originalmente no site Publishnews
É sempre bom lembrar que essa lei, negociada pelo então Secretário Nacional de Cultura no governo Collor, embaixador Sérgio Paulo Rouanet, deve-se à enorme habilidade que ele teve para minimizar os estragos feitos no início daquele governo, quando o tal do caçador de marajás revogou a Lei Sarney de incentivo à cultura, que havia sido implementada na gestão de Celso Furtado no ministério. Collor e sua fúria pseudo moralista alegava que a legislação era foco de corrupção. Mas, ao que consta, o ministro collorido Ipojuca Pontes não conseguiu demonstrar nenhum caso e ficou marcado tão somente pelo total desmonte dos órgãos de política cultural existentes. O Embaixador Rouanet, então conseguiu construir uma nova lei de incentivos fiscais.
Os problemas da lei são conhecidos: é burocrática, apela sempre para a hiper-regulamentação justificada pelo combate à corrupção. E, principalmente, por deixar nas mãos dos departamentos de marketing das grandes empresas as decisões sobre o apoio aos projetos.
Juca Ferreira tentou modifica-la, e o projeto está devidamente congelado nas catacumbas da Casa Civil. No final do governo Lula, o então ministro saiu pela tangente e apresentou o projeto do Vale Cultura, finalmente aprovado e recém regulamentado por Decreto (8.083, de 26/08/2013). Por essa legislação abre-se a possibilidade de trabalhadores de empresas “optantes” do Programa e que ganhem até cinco salários mínimos receberem o vale, no valor de R$ 50,00, para gastar em produtos culturais. As empresas que estão no regime do lucro real se beneficiarão de descontos no IRPJ, até 1% do valor desse imposto.
Dois detalhes cruciais: a empresa precisa optar (ou seja, não há nenhuma obrigatoriedade disso), e só se beneficia do incentivo fiscal as que estiverem no lucro real.
Evidentemente existem milhões de trabalhadores empregados pelas grandes empresas e pelo sistema financeiro, que poderão eventualmente ser beneficiados pelo Vale Cultura. Isso é muito bom.
Mas esses trabalhadores fazem parte do segmento mais bem remunerado, com melhores garantias de trabalho e benefícios sociais. Tudo bem que tenham isso e acesso ao Vale Cultura. Mas uma coisa é ganhar até cinco salários mínimos e trabalhar na Petrobrás, outra é ganhar até cinco salários mínimos e trabalhar no Armazém do Silva no interior de Pernambuco.
As pequenas e médias empresas, as empresas que estão no regime do Simples, só se beneficiariam se os patrões resolvessem ser benevolentes e lhes dessem Vale Cultura. Como sabemos que benevolência e boa vontade não fazem parte do espírito do capitalismo, esses trabalhadores ficam fora disso. E boa parcela deles vive em cidades com pouquíssimos equipamentos culturais, aí incluídos cinemas e livrarias.
De qualquer maneira, o Vale Cultura deverá injetar recursos bem significativos nos segmentos da indústria cultural.
Mas, qual a parte que caberá ao segmento do livro nesse bolo?
Espero sinceramente estar equivocado, mas tenho a impressão de que livrarias e editoras não estão preparados para enfrentar a concorrência dos outros segmentos na disputa por esses recursos.
Na Convenção da ANL, que aconteceu no Rio pouco antes da Bienal, representantes do grupo Ticket estiveram por lá oferecendo “condições especiais” de adesão das livrarias ao sistema, tentando arrebanhar o máximo das empresas que venham aceitar o Vale Cultura. Iniciativa interessante, que já deve ser seguida por outras operadoras.
Mas, será que a expectativa de faturar de trinta a cinquenta por cento desses recursos é razoável?
Observando anos de inércia de livreiros e editores, desconfio que o segmento que vai aproveitar melhor o Vale Cultura será o do porta-a-porta, livros de coleções. É um segmento que enfrentou dificuldades terríveis no período inflacionário, mas que se reestruturou e está ativíssimo, crescendo a cada ano de modo consistente.
Os vendedores de coleções vão atrás dos clientes. E quando entram em uma refinaria, uma usina ou grande instalação industrial, seja através dos sindicatos, associações de trabalhadores ou com licença dos departamentos de recursos humanos, aproveitam ao máximo as possibilidades que se apresentam.
E o Vale Cultura é uma grande oportunidade precisamente para essas situações. Trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos, com sede de educação e informação para si e para seus filhos, e que moram em cidades onde cinema e teatro são opções difíceis de lazer, são um alvo fantástico para quem se dispuser a ir atrás do segmento.
Quem ficar sentado esperando que essas pessoas apareçam nas livrarias vai ficar chupando o dedo. Mesmo com cartaz na porta dizendo que aceita o Vale Cultura.
O aporte de recursos proporcionado pelo Vale Cultura pode repetir as mesmas distorções da legislação mais abrangente de incentivos fiscais: os pequenos (pequenas empresas e seus empregados) completamente alijados disso. Vamos esperar que a experiência de sua aplicação motive o Ministério da Cultura a brigar com a Fazenda e o Planejamento pela extensão dos benefícios para as empresas do lucro presumido ou do Simples, onde estão os trabalhadores mais carentes de tudo. Inclusive de cultura.
*Publicado originalmente no site Publishnews